Academia de super heroínas

Sala gelada

Carla Santos
3 min readSep 10, 2019

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Audre Lorde

— Pode vir aqui.

Eu esperei alguns minutos antes de ouvir isso, nesse meio tempo meus olhos conheceram o que de fato seria um novo lar. Era uma sala gelada com armários claros, divisórias, capacetes, tanques de guerra, flechas, arcos e mulheres. Duas mesas coladas no primeiro espaço, outras três divisórias com mais três salas. Uma pipoqueira, uma caixa de bonecas e elas: as super heroínas.

— Eu sou a Ana Clara — disse ela com um sotaque que tinha gosto de cupuaçu. Forte, presente e único — eu sou analista aqui na 2ª Defensoria da Violência Doméstica. E você é a Camila? Não é isso? Camila de Sousa?

Nessa hora minhas sobrancelhas já haviam se encontrado num semblante desesperado estampado na minha cara. Eu queria tanto aquela vaga, aquela luta. Toda a insegurança de ser só mais um currículo me apertou o peito, não sabia me portar na cadeira, eu respirava com dificuldade dentro da minha melhor blusa. Não era só uma vaga para mim.

Em um segundo eu via minha história passar na minha cabeça em cena de filme. Desde criança eu me envolvia no que a que a 2 ª Defensoria sempre fez como missão. Uma eterna rebeldia com aquilo que era tão claramente inaceitável e sempre facilmente permitido. Eu cheguei muito debilitada naquela seleção, a faculdade já era, há algum tempo, um bicho de sete cabeças. Em uma seleção de estágio como aquela, alguém menos que excelente não teria chances. E eu não era mais. Em uma determinada altura me conformei que não chegaria a lugar nenhum, não teria carreira e não avançaria no curso. As disciplinas eram sobre contratos imobiliários, empresas limitadas, precatórias e instâncias, mas minhas dúvidas sempre foram sobre a fome, a miséria, as mulheres machucadas e as crianças sem família. Eu ia mal no curso porque chamava Direito e não Justiça.

Então a Ana organizou os papéis e os colocou de lado, usou a folha só para confirmar meu nome. Não quis saber de histórico acadêmico e índices. Queria saber de mim. Eu olhei naquele olho de açaí e me enxerguei. As mulheres feridas se reconhecem em silêncio, vi no coração da Ana um vão calcificado, um trecho de precipício na vida. Todas solidificamos quando arrebentadas, a Ana e eu éramos rochas e aquele encontro foi o mesmo das placas que carregam o peso dos continentes invadidos. Um terremoto poderoso de força. Acredito que a Ana tenha se percebido em mim também, as vezes já esteve numa sala como aquela, com minha idade e com a vocação nata de vencer que lhe acompanha até hoje. Aí eu entrei na Defensoria.

— A Dra. Daniela logo vai chegar da audiência.

Minha pressão arterial oscilou um pouco quando escutei isso no meu primeiro dia. Eu e minha cabeça de criança pequena imaginamos uma senhora malvada com uma peruca branca dos tribunais dos quadrinhos entrando pela porta, arrancando meu coração e engolindo minha alma. Eu não sabia absolutamente nada a respeito das castas que o Direito têm, só sabia que estagiárias voluntárias e doutoras eram nomenclaturas diferentes e todos esperavam que eu mantivesse isso em mente.

— Essa que é a nossa moça, Ana?

Dra. Daniela aparece aparece na porta vestido um sorriso que inundou a sala. Um sorriso que parecia abraço, um abraço que cabia muitos filhos. Que cabia eu. Me abraçou e eu senti um perfume de flor de mandacaru, uma voz mais doce que cocada e doce de amendoim. Ela soltou meu corpo e me olhou, e ali me vi de novo. A Dra. Daniela era uma muralha que protegia as meninas do confronto, acolhia-as entre os tijolos, resguardava. Seu coração era imensamente maior que toda a barbárie das guerras que ela travava todos os dias, e apesar de todo o horror que é a luta, o horror que é sobreviver dela, Dra. Daniela sorria e vencia.

Aí eu saí da Defensoria. Na época meus pais iam cada vez pior das pernas e eu não podia fugir da missão de crescer. Conheci outros caminhos que pagavam as contas e fui. Mas se um dia eu conseguir salvar o mundo como planejo, fazer dele um lugar sem fome, sem miséria, sem mulheres machucadas e crianças sem família, foi porque aprendi na melhor escola da minha vida.

A sala gelada das super heroínas.

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