Chuva no altar

Carla Santos
3 min readFeb 17, 2021

Episódio 2 — Mais perto do céu

Ser filha de um casal policial me rendeu uma série de situações para colecionar. Eu não vou e jamais culparia meus pais pelas sequelas que tratei sobre viver em regime fechado. Sei que foi aquela farda que encheu minha barriga.

Mas perder minha mãe em operação me tirou dos eixos.

Meu pai contou essa história pra mim só uma vez, aos meus 17 anos. Tudo o que eu soube antes disso foi pela fita da reportagem que ficava sozinha na última prateleira da nossa estante da TV. Uma única fita cassete sozinha na última prateleira, a mais perto do céu.

Depois que minha mãe se foi, eu e meu pai viramos uma bela dupla de tiras. Com o passar do tempo ele ficou mais rechonchudo, mais bigodudo e mais grisalho. Já com mais idade, foi transferido para a casa militar. Com o miocárdio mais ou menos funcionando ficava difícil aguentar as aventuras da rua. Eu senti um grande alívio por esse afastamento, eu só tinha ele, ele só tinha eu.

A casa militar era arejada, janelas grandes, paredes amarelas. Eram várias salas iluminadas e espaçosas. Tinha uma copa com duas geladeiras, um bebedouro grande de metal, uma sala de convivência com sofás e uma TV que nunca saía som.

Naquele dia tudo estava igual, no mesmo lugar.

Meu pai encheu o copo plástico de café na copa quando ouviu todos os telefones tocarem de uma vez, em efeito dominó. Saiu da copa sem olhar para trás, foi o primeiro que alcançou o telefone. Na linha era o seu melhor amigo de infância, meu padrinho de batismo e comandante geral da polícia militar:

— Pronto.

— Chama o Freitas pra mim, com urgência.

— Sou eu, comandante. Às ordens.

— Freitas… — com essa pequena pausa no telefone, meu pai sentiu um frio no peito, no mesmo lado que guardava a saudade da minha mãe. Nesse meio tempo, virou o corpo e notou os colegas imóveis perante a televisão sem som, ali ele soube — Freitas, é a Lívia.

Eu fui puxada pelos cabelos até a altura da primeira janela, ao lado catraca. Vi Gabriela chorando e gritando atrás do banco mais alto, no meio do ônibus, havia também um homem de meia idade com uma pasta na mão, encolhido no assoalho do ônibus perto de Gabriela, duas adolescentes em choque no canto esquerdo e o motorista na porta principal, baleado. Ele pressionava o cano da pistola com tanta força nas minhas têmporas que senti minha pele cortar.

Eu nem consigo chorar.

Ele é mais alto, uns dez centímetros, 1,80 e alguma coisa. Me colocou na sua frente como um escudo, presa por uma chave de braço apertada que me colou em seu corpo. Seu coração batia em rajada na altura dos meus ombros. Atirava com a boca, 50 palavras por segundos. Gritava chamadas esganiçadas, transtornadas e assassinas para as câmeras de televisão. Falou o nome do meu pai, do meu padrinho e o meu:

— Acerto de contas, vagabunda.

Ali eu soube. O céu até deixou cair a primeira gota de chuva, como uma lágrima.

Minha mãe também já sabia.

Olá! Esse é o capítulo 2 da mini série ‘Chuva no Altar’. Resolvi postar esse estilo por aqui, estou testando esse formato e por isso sua interação é muito importante para o desenrolar dos capítulos. Comente, sublinhe, aplauda, compartilhe… e até a próxima ❤

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