Chuva no altar

Episódio 1 — Falsa calma

Carla Santos
4 min readAug 25, 2020

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Merve Özaslan
Merve Özaslan

O 180/NS-4 é o ônibus mais imprevisível da cidade de Palmas. Palmas é a cidade mais imprevisível em época de chuva. Descobri que eu sou a pessoa mais frequente em episódios imprevisíveis.

Era quinta feira e eu saí do trabalho na expectativa de resolver um último detalhe do meu casamento na fervorosa avenida Juscelino Kubitschek. Imaginei que o 180/NS-04 cumpriria sua missão de se atrasar e caminhei até o ponto de passageiros conversando com meu noivo no celular, distraída. Eu tinha tanta coisa para organizar até o nosso dia e tão pouco dinheiro, menor que o dinheiro era meu tempo disponível e maior do que todo impedimento era minha vontade de amar o Heitor para sempre: —

— Só falta a diadema, amor. Vou aproveitar o almoço e correr na JK, rapidinho.

— Porque não posso te levar? Deixa para sábado que vamos juntos, vida.

— Mas aí você vai ver o vestido porque preciso provar a diadema junto com ele…

Coloco uma figurinha de um bichano arrasado e choroso para ilustrar meu desespero na mensagem. Heitor se abre a rir do outro lado do celular e entende as normas do ritual, finalizando:

— Será que meu coração vai aguentar?

Ele perguntou e sentei sozinha no ponto. Não tive tempo de estranhar essa solitude pois no exato momento que me acomodei, o ônibus já estava parado na minha frente com as portas abertas. Entro preocupada com minha pouca passagem disponível na carteirinha, passo pelo sensor e destravo a catraca com a última que me restava. De novo, que sorte, até comuniquei o Heitor desse presente de casamento do SETURB.

— Meu amor, já deu tudo certo.

Ao entrar percebo que minha sorte acabou pois o ônibus está lotado de adolescente como de costume. Nesse horário os colégios estão esperando os alunos do turno vespertino e dispensando quem comparece de manhã, desse jeito fica fácil inalar a nuvem de hormônio que tem dentro do ônibus. No fundo eu acho fofo toda aquela animação. Apesar das caixinhas de som estralarem nos cansados ouvidos de todos os passageiros daquele automóvel, tem tanta vida naqueles corpos que o ambiente vibra junto. Até me pego contando as batidas da música na cabeça.

Estou toda nervosa pela correria do casório, nem percebo o embalo perigoso do ônibus nas rotatórias. Abro minha agenda e me certifico dos detalhes que precisam se acertar nesses 60 minutos. Uma mocinha uniformizada observa minha lista, ela usa uma trança perfeita no cabelo e um brilho extra cintilante no olhos. Senti que talvez ela tivesse gostado dos post-it do casamento e engatamos um assunto:

— Mulher, pensa num serviço que é casar.

Ela fica tão feliz pela minha abertura que abre um sorriso e uma risada engraçada para acompanhar:

— Você tá noiva?

— Tô sim, com pé na igreja já, caso semana que vem.

— Tá nervosa, né?

— Mulher… dormente — eu digo em tom de brincadeira mesmo sendo cem por cento verdade.

A gente riu junto e encontro um momento de descontração naquela loucura. Descobri que a dona daquela bela trança chamava Gabriela, recém chegada na cidade e estava indo para o trabalho. Gabriela também era noiva, veio para a cidade da família do namorado para começarem a vida juntos aqui. Os dois conseguiram um bom trabalho e estavam terminando de quitar a documentação da moto recém comprada. A sogra dela era um amor e eles têm um gato chamado Farinha. Descobri tudo isso com a nossa conversa que durou o tempo exato de chegada até meu ponto, notei que minha sorte tinha voltado porque conheci Gabriela, que assim como eu, seria muito feliz. Antes que pudesse me despedir dela e descer pela parte de trás do ônibus tudo mudou. Eu vi uma briga perto da catraca e as vozes se alterando, cada vez mais altas em tom de medo.

Ouvi um disparo.

Notei que a bala perfurou o teto do ônibus que estava parado e sem motorista.

E cheio de gente se pisoteando.

Gabriela me puxa para a parte de trás do banco mais baixo e ficamos encolhidas enquanto um rapaz descontrolado e armado grita um porção de palavras que eu não escuto.

Fiquei paralisada por uma eternidade que durou segundos. Durou até eu ser arrastada pelos cabelos dentro do ônibus, presa nas mãos daquele homem que se irritou com a minha falsa calma.

Esse é o primeiro episódio de uma mini série que vou criar aqui no Medium. É minha primeira publicação com esse perfil e sua interação vão sei muito especial para mim. Espero te ver aqui no próximo capítulo! Até logo ❤

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