Valor e preço

Menino-lorde

Carla Santos
3 min readFeb 21, 2021

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Maria Kreyn, Alone Together

Eu tinha o hábito de planejar meu aniversário, fiz isso por muitos anos. Quando o ano começava, eu pensava em coisas legais pra fazer, um lugar diferente pra visitar, uma lista de amigos, cardápio. Até outubro chegar, eu passaria por muitos dias de vazio, mas eu me esforçava muito pra ficar feliz no meu aniversário porque eu achava que podia ser um dia especial pra mim.

Há alguns anos eu estava sozinha nesse dia, quando eu levantei da cama eu não tinha nenhuma mensagem. Eu vi meu pai de saída pela porta, ia passar o feriado na fazenda. Minha mãe lembrou de mim quando o sol foi embora e eu não tinha nenhum amigo na cidade pra dividir uma fatia de bolo.

Mas eu tinha você.

Você me tirou de casa e me levou pra sua, eu não tinha força pra esboçar um sorriso. Fiquei debaixo dos seus lençóis com o corpo gelado, dormindo no seu travesseiro molhado, depois de ter chorado até cair no sono.

Eu sempre soube que você era dois. Eu me avisei que a gente ia acabar assim.

Fui convencida a me ver problemática demais pro menino-lorde, tão centrado. Te avisaram que eu não era a mais bonita das suas possibilidades, você tão bem vestido. Até que você me viu pobre demais para as suas ambições. Eu só tinha o meu amor pra oferecer, mas você queria um avião com sua inicial bordada nos estofados, uma caneta de ouro guardada no melhor terno, um carro que alimentaria algumas centenas de famílias e o respeito das pessoas poderosas que conhecem seu nome.

Você é pequeno demais pra enxergar que a falta de amor é a verdadeira miséria.

Eu ainda vejo um menino sozinho aí dentro. Chorando, com medo do guarda da rua, querendo um pai pra ir ao kart, machucado pela menina mais bonita da escola, chegando sozinho nas quadras de futebol pedindo uma vaga no time da pelada.

Mas ao menor sinal de ameaça, você muda. Seus olhos brilham pro ouro errado, fica 24h treinando pra ter sempre uma resposta ácida na ponta da língua, escondendo o fato de não ter ideia do que vai fazer com a própria vida.

Na adolescência o sexo vira uma pauta corriqueira, é sempre um assunto. Eu e minhas amigas tínhamos muitas dúvidas e curiosidades como qualquer outras moças na nossa idade. Eu lia muito e gostava demais de cinema, de tanto conhecer personagem dos filmes de princesa, eu queria que minha primeira vez fosse como o ápice do parágrafo ou a grande cena do roteiro, um momento mágico com quem a gente gosta.

Mas nunca tive uma primeira vez, eu fui de criança à estatística em alguns minutos, depois desse episódio eu só vaguei de mão em mão, achando que só servia pra ser violada. Eu aprendi que eu tinha algo pra trocar, então me usei de moeda. Se eu ficar sem roupa, você pode me amar? Por favor.

Mas com você não.

Eu abri minhas feridas com as pernas cruzadas, expus minha alma com a pele vestida, eu te toquei com as mãos desatadas e você me amou assim primeiro. Me despir na sua frente foi uma das coisas mais dolorosas que eu já fiz. Eu não sabia como era ser amada, então muitas eu chorei quando você me tocava, eu nunca sabia se era você ou ele.

Eu desejo que a vida não te ensine com tanta dureza a diferença entre valor e preço. Pode ser que você acabe descobrindo isso tendo tudo que você quis comprar, mas sem ter ninguém que realmente te amou, como uma senhora triste numa casa sem vizinhos ou um velho sujeito acuado em alqueires.

Dá uma chance pra esse menino que você esconde, ele também te ama. Espero que pelo menos ele você não decepcione.

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